Sexta-Feira, 14 de Novembro de 2025

ARTIGO: O Bentley, o Lázaro e a Cigarra de La Fontaine

Publicado em 16/01/2015
Por Marta Soares
f835c084825789b902a04f43212f.jpg
f835c084825789b902a04f43212f.jpg
/

Durante alguns anos, morei num apartamento situado em frente a uma rodovia federal, de onde eu, às vezes, ingerindo vinho e ouvindo meu dileto amigo Bach, observava as pessoas passando apressadas, como cupins inquietos, em busca de alimento para si e para os seus, mas, em meio a essas térmitas operárias, vislumbrava, também, de quando em vez, algumas pessoas semelhantes à cigarra da fábula de La Fontaine, passando por ali e pela vida, sem ambições, sem sonhos.

Indagava-me se aqueles indivíduos mendicantes não eram a negação do que nos faz homem: ser que almeja, que traça metas, às vezes até inatingíveis, mas ainda assim as estabelece, buscando amealhar fortuna, seduzir pessoas para prazer carnal, ou mesmo atingir poder, glória, enfim, uma miríade de aspirações que nos faz mover para frente.

No entanto, já experimentando os mesmos efeitos dos convivas do Banquete de Platão, após algumas ingestões do fruto de Baco, trazia aqueles pensamentos ao avesso, perguntando-me se esses párias ambulantes não seriam verdadeiramente felizes, e eu, um estúpido Dom Quixote, vendo alegria em fumaças multicores e atraentes, as quais, inexoravelmente, se dissipam com a brisa dos tempos, que sopra sem cessar, levando, traiçoeiramente, todas as esperanças, deixando cada um de nós locupletados de dor e angústia por não poder sustentar o castelo da vida que desmorona.

Vi esses dias um outro passando pela Avenida Severa Eulálio, desta cidade de Picos, com cabelos desgrenhados e causticados de sol a pino, vestido andrajosamente, e imaginei que ele, não obstante o modo como se apresentava, deveria se sentir tão abastado como um dos Cresos modernos, com suas roupas de grife do melhor corte europeu. Dirigia, também, duas toscas e rotas sandálias de pescador e experimentava, ainda assim, pensei, a mesma sensação de conduzir um BMW ou de um Bentley luxuoso.

Observei, também, que o mendicante dispunha de uma sacola plástica com um pequeno manjar dentro dela, o primeiro do dia, e talvez o derradeiro. No entanto, o que importava isso, se, tal como para os pardais, Deus havia providenciado o pão cotidiano. Fechei os olhos, por alguns instantes, e vi-o dando graças ao Pai Celeste pelo acepipe recebido, ao contrário de mim, que, não rara vezes, almeja, como qualquer de nós, sempre um banquete regado com desperdício de tudo, cujas migalhas vão para cestos de lixo, quando deveriam ser distribuídas a esses Lázaros famélicos ou, se não, pelos menos armazenadas para dias de pastos diminutos.

Passou o lazarento por mim em passos homogêneos, não sei para onde e para qual fim, se contente ou infeliz com a sorte dispensada pela vida a ele, e eu, apressado como sempre, corri com ânsia para os afazeres a mim incumbidos e que, ao mesmo tempo, nos trazem atrelados os dissabores e preocupações do dia-a-dia.

POR ANTÔNIO MADSON VIEIRA DE OLIVEIRA – SERVIDOR PÚBLICO – LOTADO EM PICOS-PI

 

Comentários