Há dias na vida em que tudo parece estar parado, quase morrendo, numa remansosa paz de tempos invernais, até os pássaros mostram-se nas árvores num estado apático e de modorra, como se estivessem engasgados, guardando o seu canto singelo para si, reforçando o marasmo dessas horas hibernais.
Engraçado é que, nesses instantes, sempre alguém surge, provocando o estalo que desperta, chamando-nos para fora de nossa caverna, onde hibernamos para a vida, tal como Jesus convocando Lázaro, seu amigo, que dormia, há quatro dias, no seu sono de morte, envolto em amarras.
Da última vez em que nós assim estávamos, despertamos com uma pessoa singular do povo, dessas que não passam sem nos furtar a atenção, por ter personalidade vivaz e por ser dotada de sabedoria questionadora, como a do Menino-Deus, que fora perdido no templo, aos doze anos, e encontrado por seus pais, três dias depois, no meio de doutores, maravilhando-os com sua argúcia e inteligência.
Dizia o homem comum do povo que não entendia o porquê de entregar a César o que é de César, através de escorchantes impostos, e só receber, em troca, males que não devem se dar a qualquer dos filhos de Deus. Citava, indignado, que o gestor de sua cidade, eleito por ele para servi-lo, qual um escravo ao seu senhor, despiu-se dessa função, logo que pôs suas partes moles, gostosamente, no trono do Poder Municipal, pavoneando-se, em seguida, como o mais opulento dos reis, senhor de todos os homens, a quem se deve dispensar toda a honra e reverência.
No píncaro de sua verve discursiva, externava sua indignação com o fato de ter de residir numa rua pavimentada somente com poeira, untada em lama mefítica, a qual é arborizada com matos, que albergam fauna seleta e indesejada de mosquitos sugadores e vetores de doenças, que são refeição para batráquios, os quais, por seu turno, nessa cadeia alimentar de horrores, são alimento para alguns rastejadores peçonhentos que ali habitam, enquanto sua Excelência, Prefeito, caminha em solo firme, seguro e enegrecido de breu asfáltico.
Em face dessa argúcia, começamos a sair, cada vez mais, do estado letárgico em que nos encontrávamos, como se despertássemos de um sono de aceitação dos desmandos e da inércia dos gestores municipais frente às inúmeras mazelas a que estão sujeitos os administrados locais, não obstante estes terem concedido mandato eletivo a alguém que julgavam como o redentor dos sem vozes e dos sem vezes.
No seu frenesi, disse que não suportava mais ser atendido em hospitais sem médicos, porque considera que os poucos existentes não consultam, apenas receitam, numa rapidez supersônica, tentando, num esforço inglório, distribuir saúde a uma demanda quilométrica de pacientes, que almejam ao menos tocar nas vestes alvas desses esculápios para se verem livres de suas enfermidades, mas, infelizmente, é impossível por não serem eles o Messias Milagroso, e sim vítimas, também, do Sistema Único Desumano e Perverso de Saúde (SUDPS), deste país.
Já desperto, ficamos estupefato quando ele disse que se sentia aviltado com o fato de assistir, diuturnamente, a ida de crianças e de adolescentes a escolas públicas que não ensinam, antes servem apenas como cocho para distribuir a rala refeição, a cujo manjar se ousa ainda chamar de merenda escolar, a qual, segundo ele, é a única causa motora para levá-los até ali, nunca, em absoluto, para buscarem o verdadeiro alimento que deveria ser fornecido por tais centros educacionais, que é o conhecimento científico, que desenvolve cérebros pensantes, capazes de fazer girar a engrenagem da máquina social.
Após toda essa palestra reflexiva, o homem de pensamento filosofal partiu em silêncio, encerrando, assim, seu libelo acusador contra o gestor público que havia ajudado a eleger, o qual, logo nos primeiros albores de seu mandato, de próprio punho redigiu sua carta de alforria, concedendo a si próprio sua libertação das obrigações e amarras de cativo para com os elevados interesses de seus senhores (eleitores), os quais permanecerão habitando, invariavelmente, em enormes senzalas de abandono e de sofrimento, onde aí só imperam a chibata, as doenças e a ignorância.
ANTÔNIO MADSON VIEIRA DE OLIVEIRA – SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL – LOTADO EM PICOS-PI